Em tempos de crise, os dados pessoais estão em risco Em tempos de crise, os dados pessoais estão em risco

Em tempos de crise, os dados pessoais estão em risco

Boas intenções do poder executivo não podem ultrapassar ordenamento jurídico

Por Gustavo Chaves Barcellos e Layon Lopes*

Vivemos, inequivocamente, um dos tempos mais estranhos do século XXI.

Até então, poucos foram aqueles que vivenciaram um cenário de pandemia que se assemelha a um cenário de guerra. A última vez que o mundo se deparou com situação semelhante foi no início do século passado quando teve que enfrentar o surto provocado pela Gripe Espanhola.

De lá para cá, o mundo mudou muito, tanto geográfica quanto política e juridicamente.

Atualmente, a maior parte dos países ocidentais vivem em regimes democráticos estruturados sobre o chamado Estado de Direito – onde a lei limita a atuação do Estado em relação à vida das pessoas, as quais gozam de garantias individuais invioláveis, tais como o direito à vida, à segurança e à intimidade!

O regime democrático brasileiro é relativamente jovem, se comparado às democracias das principais potências mundiais, salvo poucas exceções. Contudo, a Constituição Federal segue a sistemática do Estado Democrático de Direito.

Infelizmente, por vezes, agentes estatais tentam relativizar as garantias outorgadas em nossa Carta Magna, que foi criada para ser cumprida e protegida pelo Estado, cabendo ao Poder Legislativo e Judiciário, respectivamente, criar e validar juridicamente a aplicação de exceções a esta regra.

Em recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), a ministra Rosa Weber suspendeu a eficácia da Medida Provisória (MP) 954/2020, que prevê o compartilhamento de dados de usuários por prestadoras de serviços de telecomunicações com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), para dar suporte à produção estatística oficial durante a pandemia do novo coronavírus.

O voto da ministra é didático ao referir que a Constituição prevê, no art. 5º, XII, a inviolabilidade do sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução penal.

Neste sentido, salta os olhos a inconstitucionalidade do artigo 2º da MP 954/2020 que impõe às empresas prestadoras do Serviço Telefônico Fixo Comutado – STFC e do Serviço Móvel Pessoal – SMP o compartilhamento com IBGE, da relação de nomes, números de telefone e endereços de seus consumidores, pessoas físicas ou jurídicas.

Percebam, caros leitores, que a imposição referida acima não conta com nenhum embasamento constitucional, tampouco autorização judicial, sendo uma determinação unilateral feita pelo Poder Executivo.

Lembra-se que os dados pessoais referidos no artigo 2º da MP 954/2020 integram o âmbito de proteção das cláusulas constitucionais assecuratórias da liberdade individual (art. 5º, caput), da privacidade e do livre desenvolvimento da personalidade (art. 5º, X e XII). Sua manipulação e tratamento, portanto, devem observar, sob pena de lesão a esses direitos, os limites delineados pela proteção constitucional.

No intuito de embasar comparativamente o seu voto, a ministra Rosa Weber traz à tona o artigo The Right to Privacy, escrito a quatro mãos pelos juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos, Samuel D. Warren e Louis D. Brandeis, no qual já se reconhecia que as mudanças políticas, sociais e econômicas demandam incessantemente o reconhecimento de novos direitos, razão pela qual se faz necessário, de tempos em tempos, redefinir a exata natureza e extensão da proteção à privacidade do indivíduo.

Ocorre que, independentemente do seu conteúdo, mutável com a evolução tecnológica e social, permanece como denominador comum da privacidade e da autodeterminação o entendimento de que a privacidade somente pode ceder diante de justificativa consistente e legítima.

Conforme dito no artigo em questão, a invasão injustificada da privacidade individual deve ser repreendida e, tanto quanto possível, prevenida.

De forma alguma se tenta impossibilitar a análise de dados pessoais pelo Poder Público, uma vez que isto se faz necessário para que o Governo possa garantir o exercício de outras garantias constitucionais pelos seus governados (como o direito à saúde e à segurança, por exemplo). Entretanto, se tratando de dados pessoais, existem alguns balizadores que devem sempre ser observados pelo Poder Público (objeto do tratamento, modo, finalidade, amplitude, hipóteses de encerramento, implementação de procedimentos, indicação de responsáveis pelo tratamento).

No que tange à MP 954/2020, só se tem um único dispositivo que dispõe sobre a finalidade e o modo de utilização dos dados pessoais. O Poder Executivo se limitou a enunciar que os dados em questão serão utilizados exclusivamente pela Fundação IBGE para a produção estatística oficial, com o objetivo de realizar entrevistas em caráter não presencial no âmbito de pesquisas domiciliares.

Ou seja, a MP 954/2020 não delimita o objeto da estatística a ser produzida, nem a finalidade específica, tampouco a amplitude. Igualmente, ela não esclarece a necessidade de disponibilização dos dados nem como serão efetivamente utilizados.

Ora, em tempos em que a maior parte das empresas tenta se adequar a Lei 13.709 de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados – “LGPD”), é uma enorme contradição o Governo Federal editar, diante do quadro pandêmico que enfrentamos, uma medida provisória que não observa todos os balizadores existentes acerca do tratamento e compartilhamento de dados pessoais.

Uma Medida Provisória editada com tais vícios não oferece condições para que o Poder Judiciário avalie a sua adequação e necessidade, sendo imperativo neste caso que prevaleçam as garantias constitucionais outorgadas a todos os brasileiros.

Outro ponto extremamente preocupante indicado pela ministra é que a MP 954/2020 não apresenta mecanismo técnico ou administrativo apto a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados, vazamentos acidentais ou utilização indevida, seja na sua transmissão, seja no seu tratamento. Limita-se a delegar a ato do Presidente da Fundação IBGE o procedimento para compartilhamento dos dados, sem oferecer proteção suficiente aos relevantes direitos fundamentais em jogo.

E vale frisar que, nos próprios autos do processo deste caso, a própria Agência Nacional de Telecomunicações (“ANATEL”) destacou ser necessária “a observância de extrema cautela no tratamento dos dados de usuários de serviços de telecomunicações”. A Agência recomendou a adoção de medidas visando adequar a MP 954/2020 à garantia dos princípios estabelecidos na Constituição Federal, na Lei Geral das Telecomunicações e na Lei Geral de Proteção de Dados, de modo a assegurar a proteção da privacidade, da intimidade e dos dados pessoais de usuários de serviços de telecomunicações.

Diante deste cenário, para aqueles que primam pelo Estado Democrático de Direito e, consequentemente, pela observância das garantias individuais constitucionais, não se pode aceitar que qualquer ato emanado pelo Poder Executivo, que não atenda aos balizadores impostos pelo Ordenamento Jurídico – por mais bem intencionado que pareça ser – possa relativizar as disposições constitucionais, as quais, reitera-se, são regras e não exceções aplicadas ao bel-prazer do Estado. 

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*Lopes é CEO do Silva | Lopes Advogados e Barcellos é integrante da equipe do escritório.